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quinta-feira, 4 dezembro, 2025

Ágora Jatobense

Confira o conteúdo assinado por Cacá Haddad

“Qualquer semelhança com pessoas, fatos ou a realidade é mera coincidência”

A garrafa de café cuspia bolhas e espuma. Paulo Martins praguejou.

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̶  O povo deste escritório só sabe beber! Vou fazer um café novo.

Eu tinha criado aquele hábito de ao menos duas vezes na semana passar no escritório de contabilidade para colocar o papo em dia com o amigo, contador e presidente do clube dos comerciários de Jatobá. A conversa inexoravelmente se desenvolvia dentro da seara política. Falávamos da política nacional, estadual e regional, mas o que aguçava minha rasa ideologia era caminhar nas sendas da política local. Ali tínhamos sempre à mão os personagens principais; eram examinados com lupa criteriosa. Enquanto Paulo Martins era hipnotizado pela água em início de ebulição sobre o pequeno fogão de duas bocas adaptado sobre a pia, eu desfiava palavras de ordem.

̶  O problema de nossa classe política é a falta de união. Cada um vai pra um lado, pensando em seus interesses eleitoreiros, com a finalidade única de se sobrepor ao adversário. Para eles o importante é mostrar quem fez mais pela cidade, que o adversário não sabe nada e que apenas ele e seu grupo são os senhores da verdade.

Minha frase imperativa foi seguida por alguns segundos de silêncio. A água fervente, derramada sobre o pó de café, exalava na pequena cozinha um cheiro morno e acre. Agora tingida pelo preto amargo, tilintava em contínuo no fundo da capsula espelhada da garrafa térmica. Foi quando Paulo Martins pensou em acender a faísca no paiol.

̶ Se pudéssemos colocar estes pseudolíderes em uma sala e trancá-los! Deixar que saiam só quando alinhassem o pensamento ao espirito coletivo e republicano.  ̶  disse Paulo Martins, enquanto tirava a primeira xícara de café.

̶  Vai ser como o Conclave de Viterbo. Acho mais fácil se matarem do que chegar a um acordo pelo bem comum. Eles não conseguem debater senão com a voz ativa do “eu tenho razão”.

̶  Mesmo assim poderíamos propor uma grande reunião entre a população e os líderes de Jatobá. Quem sabe com a sociedade civil mediando os debates eles não se entendem.

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Concordei que havia um fio de esperança. Naquela época o senso comum ainda corria em minhas veias. Era um jovem adulto, sem as experiências advindas das caneladas da vida, que tendem a domesticar os românticos. Tinha vontade de mudar o mundo. Esfregar na cara da classe política o quanto eles eram apenas gincaneiros adolescentes. Foi assim que surgiu a ideia de criar o Fórum de Desenvolvimento Socioeconômico de Jatobá.

A ideia criou corpo e em uma semana reunimos os organizadores do evento. Afim de oficializar o encontro, os comerciários, liderados por Paulo Martins, convidaram a OAJ, Ordem dos Advogados de Jatobá e a Câmara Municipal para encabeçar a organização. Ficou definido que nas noites de uma semana de debates, discutiríamos os principais eixos de desenvolvimento municipal: saúde, segurança e trânsito, agricultura e meio ambiente, educação e desenvolvimento econômico. Deveria ser um encontro apolítico, sem bandeiras ideológicas e partidárias. O protagonismo ficaria na mão das entidades, clubes sociais e instituições que representavam a sociedade civil organizada. Os conhecidos beligerantes, afiliados políticos, líderes de partidos e esquineiros de plantão, poderiam ouvir e propor suas ideias, mas a palavra última seria da sociedade jatobense.

A organização convidou o jornalista Vanderlei Sereno para o cargo de secretário executivo. Sereno era um metódico diplomata; mais do que isso, sabia organizar pessoas e sabia do que as pessoas gostavam. Entendia que uma conversa enviesada no lugar e na hora certa poderia garantir o melhor desenrolar das circunstâncias. Para isso era sempre muito polido. Encaixava sorrateiramente o bom e velho elogio em seu interlocutor, sem abrir mão, se necessário, de palavras ferinas. A mim, coube auxiliá-lo.

Reuniões foram feitas com os protagonistas do encontro: presidentes de associações de bairros, clubes de serviços e entidades de classes como os sindicatos de trabalhadores, sindicatos patronais e ordens de profissões regulamentadas.   Explicamos o objetivo do evento e como seria a sua organização.

No entanto, vislumbramos o potencial campo de batalha quando da participação da classe política. Achamos por bem fazer uma reunião exclusivamente para eles. Os líderes dos partidos foram convidados. Em uma sala de pequenas dimensões do clube comerciário adentraram como se estivessem em um tribunal da Santa Inquisição. A grande mesa ovalada ocupava quase que a totalidade do espaço, o que forçou a proximidade de antigos inimigos políticos. Em questão de minutos as mágoas construídas ao longo dos últimos anos foram tomando formas austeras nos rostos daqueles personagens. Sobrancelhas e barbas mal aparadas serviam de molduras para rugas retesadas. Cumprimentos de mãos duras, alguns tapas nas costas e sorrisos tímidos davam o ritmo de uma reunião rememorada pelas discussões da última campanha eleitoral. Os líderes da atual situação logo quiseram entender do que se tratava o encontro. Romano Lopez, secretário de gabinete do prefeito Don Grandito não esperou que os organizadores iniciassem oficialmente a reunião. Logo sentenciou.

̶   Qual a intenção deste encontro? A cidade está bem cuidada! Não entendo o porque de se criar celeumas desnecessárias.

Vanderlei Sereno, secretário organizador, prontamente tomou a palavra

̶ Não existirão celeumas. Este será um encontro com a participação da sociedade civil. Políticos e não políticos terão o mesmo poder de fala.

̶ Desnecessário! Nunca a cidade foi tão bem administrada. A situação se orgulha do progresso jatobense nos últimos anos.  ̶  vociferou Romano Lopez.

̶  Alto lá!  ̶  gritou do outro lado da mesa Don Pedrito, líder da oposição e ex-prefeito derrotado na última campanha que pleiteava a reeleição – em qualquer esquina se ouve reclamações.

Sereno antevendo uma guerra de narrativas cortou a conversa.

̶  Senhores, este é um evento de união. Por favor, guardem as facas.

Romano Lopez e Don Pedrito cruzaram os braços sobre as protuberantes barrigas, armaram pequenos beiços e encostaram o queixo no peito, enquanto o secretário discorria sobre o funcionamento do fórum.

̶  Serão cinco noites. Cada encontro terá um eixo temático para discussão dos desafios futuros da polis jatobense. A sociedade civil discutirá quais serão os desafios dos alcaides e edis que irão ocupar as cadeiras do executivo e do legislativo nos próximos dez anos.

Romano Lopez reerguendo-se do torpor da última advertência, questionou quem teria voz nas mesas de debate. Vanderlei, segurando firme as rédeas da reunião explanou os protocolos de participação.

̶ Todos terão voz! Cada noite de debate contará com os representantes ligados àquele eixo temático. Por exemplo, na mesa de discussão sobre o trânsito, serão convidados o secretário municipal da pasta, um vereador da situação, um vereador da oposição, o delegado e o presidente da comissão municipal de trânsito e outros participantes que tem ligação com a temática, sejam eles alinhados à situação ou à oposição. Depois de uma semana do término do Fórum de Desenvolvimento Socioeconômico de Jatobá lançaremos a Carta de Jatobá, um documento de intenções que os próximos prefeitos e vereadores deverão respeitar como objetivos da administração municipal.

Demos o tom e o ritmo. O bem comum seria o objetivo de todos. Ao final despediram-se apreensivos e ao deixar o local do encontro os dois grupos se reorganizaram nas esquinas opostas ao clube comerciário. Se entreviam e conversavam olhando para o chão, colocando as mãos sobre as bocas e disfarçando a tensão ao cumprimentar efusivamente um ou outro passante.

Na esquina da situação discutiam como se precaver aos ataques que sofreriam: “A oposição irá aproveitar para nos atacar. Precisamos mostrar à população que nós somos o grupo do bem!”

Na esquina da oposição discutiam as estratégias de ataque: “É a nossa chance de mostrar à população quem são estes tubarões do poder. Precisamos mostrar a todos que nós somos o grupo do bem!”

Ainda no clube comerciário e entorpecidos pelo sentimento ideológico coletivista e republicano, comentávamos como foi a reunião: “Eles vão se entender! Tudo concorrerá para o pleno desenvolvimento de nossa Jatobá, terra de sol e prosperidade do bem comum!”

Depois de pouco mais de um mês daquele café com Paulo Martins já tínhamos em mãos os impressos de divulgação: cartazes e panfletos carregavam sentenças que desafiavam a acomodada população. A frase de William George Ward estava no rodapé do cartaz: “O pessimista se queixa do vento. O otimista espera que ele mude. O realista ajusta as velas”. A frase de Martin Luther King figurava no panfleto que também servia de convite: “O que mais preocupa não é nem mesmo o grito dos violentos, dos corruptos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética, o que mais preocupa é o silêncio dos bons”.

Jatobá comprou a ideia. Nas padarias, bares e cafés da cidade não se falava em outro assunto. Representantes dos mais diversos segmentos sociais se apresentavam oferecendo auxilio e convidando seus membros para participar das cinco noites do evento. Alunos de escolas públicas e jovens universitários retiravam convites. O curso de jornalismo da FJI, Faculdades Jatobenses Integradas, se disponibilizou, liderados pelo professor Barba, a produzir e lançar um jornal sobre o fórum.

Vanderlei e eu, chancelados pelo trio organizador e imbuídos do espírito democrático, entendíamo-nos arautos da reconciliação jatobense. Mal sabíamos que situação e oposição utilizariam o espaço para fazer o que mais gostavam: brincar de gincana política.

O comportamento dos politiqueiros jatobenses lembrava muito as gincanas escolares, quando no ensino médio a direção dividia a escola em grupos que se rivalizavam em brincadeiras pueris como corrida do saco, corrida com ovo na colher ou encontrar uma bala dentro de um prato com farinha. A diferença aqui era a idade das crianças e o teor da rivalidade. Na escola quando terminava a gincana éramos amigos como antes. Nos pleitos jatobense, após o sufrágio, os então adversários se tornavam inimigos. Quem apoiava o governo sentia-se vidraça. Os oposicionistas, por sua vez, escolhiam as melhores pedras, para em qualquer deslize apedrejar seus inimigos.

Sabíamos que não seria fácil conduzir os debates. Para mediar as mesas de discussões convidamos o apresentador e radialista Voz de Ouro. Em caso de exaltação dos ânimos mais aflorados o jornalista Deixa Comigo seria o moderador das vaidades.

Embora estivéssemos preparados, nem imaginávamos que os gincaneiros se organizavam em constantes reuniões para traçar estratégias de combate. A jornalista Mirela Picuinha, proprietária do Jornal Cidade Jatobense e correligionária do oposicionista Dom Pedrito, ex-alcaide de Jatobá, gritava palavras de ordem na reunião dos oposicionistas.

– Precisamos nos unir! Pedi em nossa última reunião que cada um de vocês trouxessem falhas da administração ligadas aos eixos temáticos do Fórum de Desenvolvimento. O que vocês conseguiram levantar?

Os correligionários desfiaram os problemas levantados.

̶  O posto de saúde não tem preservativos e dipirona. O que pode ser um grande problema nos dois sentidos. Imagina a dor de cabeça que pode causar uma gravidez indesejada.

̶ Faz duas semanas que as escolas municipais servem apenas frango. Soube que um primo do secretário de finanças ganha todas as licitações.

̶   Descobri uma rua com dois buracos, um de quinze e o outro com vinte centímetros de diâmetro. O quebra-molas instalado na frente da rodoviária está um centímetro mais baixo do que exigido pela Associação Jatobense de Normas e Técnicas.

A mágoa de Mirela Picuinha com o atual administrador da cidade era conhecida de todos. Perdera o contrato de divulgação de editais da municipalidade e o cargo de assessora de imprensa de Jatobá. Terminou a reunião com a promessa da seguinte manchete na próxima edição do Cidade Jatobense: “Jatobá largada. Falta de camisinhas e quebra-molas fora dos padrões mostram o despreparo de Dom Grandito.  Fórum de desenvolvimento será o momento de retomada de Dom Pedrito”.

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Era segunda-feira, tarde do primeiro dia do Fórum Jatobense de Desenvolvimento Socioeconômico. Vanderlei e eu estávamos organizando os últimos detalhes na entrada do anfiteatro municipal, local do evento, encravado na Praça do Jatobá. De longe o secretário executivo reconheceu alguém se aproximando e fez questão de me cutucar com o provérbio romano: “se quer paz, prepara-te para a guerra”.

Atravessava a Praça do Jatobá o líder da situação e chefe de gabinete do prefeito, Romano Lopez. Vinha atarracado sob o peso de sua adiposidade, levantando as calças que lhe deixavam o rego a mostra e arrumando os óculos de grossas lentes verdes que o protegia do sol. Era um sujeito de olhar enviesado, atento aos diálogos que poderia lhe subtrair o que mais amava, o poder. Parcos fios de cabelos brancos repousavam em uma cabeça já manchada pelos sinais da idade. Nas mãos trazia a última edição do jornal Cidade Jatobense.

̶  O alcaide e eu queremos uma hora de fala antes do inicio do evento. Precisamos esclarecer a população o quanto trabalhamos nestes últimos dois anos. Pegamos a prefeitura esfacelada pela má administração de Don Pedrito e de sua desastrosa gestão. Temos o direito de nos colocar em uma torre de marfim antes que se inicie o bombardeio.

Vanderlei e eu respiramos fundo e demos inicio a uma tentativa calma de explicar para o dito cidadão qual era a verdadeira intenção do evento.

̶  Romano, o Sr. está equivocado. Não queremos construir um espaço para que a população apedreje vocês. É só um encontro para discutir os problemas da cidade e propor resoluções para o futuro  ̶   dizia tentando acalmá-lo.  O que não resolveu muito, via-se sua camisa grudada em suor; os óculos estavam desalinhados em seu rosto.

̶  Mas já construíram! Vocês viram a manchete que a Mirela Picuinha estampou na capa da última edição deste jornalzinho mequetrefe? – apontava o dedo indicador mostrando o letreiro de seu desafeto.

̶  Espera um pouco Sr. Lopez. Este ataque não tem nada com o Fórum de Desenvolvimento Socioeconômico. Reconheço que é um golpe sujo utilizar o evento para atacar vocês. Este jornal não foi construído aqui dentro. Está fora de cogitação abrir espaço para defesa. Vocês não foram atacados aqui e se depender de nós não deixaremos esta arena de debates pró desenvolvimento se transformar em uma guerra de trincheiras. As discussões ocorrerão no âmbito do debate democrático – defendia Vanderlei.

̶   Mas e se formos atacados? Estão se reunindo todos os dias para traçar estratégias. Seremos vidraça! Don Pedrito utilizará a palavra para nos aviltar.

Lembrei das palavras do Rei Salomão – “vaidade das vaidades, tudo é vaidade” – antes de dar a cartada final.

̶  Se forem atacados a comissão organizadora irá deliberar os procedimentos necessários para a retratação.

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Voz de Ouro envergando seu terno branco, utilizado apenas em ocasiões especiais, impostou sua voz grave e declamou a primeira frase no microfone: “Jatobá unida, cidade desenvolvida. Boa noite senhoras e senhores, população jatobense aqui reunida para traçar um futuro promissor”. Seguiram-se os protocolos de abertura: “Fiquemos em pé para entoar o hino nacional”; “Vamos agora ouvir o hino de Jatobá”.

Já na primeira estrofe do hino de Jatobá Vanderlei Sereno e eu deixávamos as lágrimas rolar: “Jatobá surge altaneira, dentre as primeiras de nossa nação”. Entendíamos ser um evento que poderia redimir a cidade de seus problemas. Uma oportunidade de diálogo em prol da população. Durante o hino, ao olhar Dom Grandito e Dom Pedrito, não identifiquei lágrimas. Percebi olhares inquietos e postura defensiva; o comportamento circunspecto anunciava que a noite não seria como havíamos planejado.

Na plenária do anfiteatro municipal, dividida em dois blocos, os diversos grupos da sociedade civil organizada acomodaram-se aleatoriamente. No bloco à direita da mesa de debates se arranjaram-se os correligionários da situação. À esquerda, estrategicamente sentaram-se os oposicionistas.

Os presidentes das três instituições organizadoras tomaram a palavra. Defenderam a importância do encontro e a real necessidade da discussão das grandes causas jatobense, sem picuinhas e ataques politiqueiros que poderiam apequenar a tentativa de diálogo. Seria a oportunidade da classe política escutar e debater in loco as demandas e necessidades futuras de Jatobá.

Deu-se a composição da mesa de debates da primeira noite. Para discutir o tema da saúde foram convidados o secretário municipal da pasta, um vereador, o venerável da Loja Maçônica, responsável por presidir a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Jatobá, a enfermeira chefe e o diretor clínico da Santa Casa. Depois de uma explanação sobre o contexto técnico, social e político da saúde jatobense a palavra foi dada a plenária para questionar os integrantes da mesa. Logo um correligionário da oposição tomou a frente para o primeiro ataque. O moderador Deixa Comigo deu a palavra para que ele formulasse a pergunta.

̶  Gostaria de perguntar para o vereador da base governista, Sr. Altair Moraes, o por que da falta de preservativos nos postos de saúde. Nem camisinha o seu prefeito consegue comprar?

Deixa Comigo tocou a campainha da ordem e ponderou que o espaço era aberto para perguntas e não para ataques. Deu a palavra para que o vereador Moraes respondesse, mas a primeira faísca estava lançada. A resposta foi no mesmo tom de deboche feita pela pergunta.

̶  Fique sabendo o Sr. que camisinha não falta e não faltará. Isto é falácia e intriga da oposição. Preservativos não podem faltar para não corrermos o risco de nascer outro desinformado como o Sr.

A líder comunitária Conceição das Dores pediu a palavra e questionou.

̶  Tive o desprazer de ler em um jornal de que a saúde jatobense carece de dipirona e camisinha. Isto é ridículo! Uma mulher pode aguardar meses na fila para atendimento no aparelho de mamografia. Tanta demanda séria para discutir neste espaço. E olha o que presenciamos:  os principais grupos políticos discutindo intrigas de comadres.

A noite dedicada às discussões dos problemas ligados a saúde jatobense ficou restrita aos ataques e defesas sobre o problema da falta de preservativos. Embora um ou outro munícipe tentasse engendrar outras discussões, os correligionários situacionistas e oposicionistas se atacavam voltando sempre na mesma discussão. A ágora jatobense se transformou em um ringue. A campainha da ordem, instalada para manter a organização, estava afônica. Deixa Comigo estava exausto e entregava os pontos. Já havia transcorrido o tempo máximo da primeira noite de debates. Voz de Ouro deu por encerrada as atividades e convidou a população a prestigiar os próximos encontros do Fórum de Desenvolvimento Socioeconômico de Jatobá. Havia acabado de desligar o microfone quando entrou gritando no anfiteatro a primeira dama do município. Nervosa pelos ataques sofridos pelo marido e munida de uma grande caixa de preservativos, jogava-os para cima gritando.

– Vocês querem foder meu marido? Então que fodam com segurança!

Quando deixei o anfiteatro vi, na Praça do Jatobá, alguns adolescentes enchendo os preservativos e brincando como se fossem balões. Eram alunos de uma escola pública que participaram da primeira noite de discussões. Foram cooptados por uma professora que entendia ser esta uma oportunidade ímpar para falar sobre o bem comum de Jatobá.

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Assim transcorreram as outras quatro noites do Fórum de Desenvolvimento Socioeconômico de Jatobá. A temática da educação foi pautada pela suposta discórdia do escândalo dos frangos, comprados para a merenda das crianças. No final a oposição soltou alguns galináceos no anfiteatro. O tema do trânsito jatobense ficou por conta do polêmico um centímetro a menos do quebra-molas da rodoviária. Para ironizar, os próprios governistas mediam com trenas as dimensões do anfiteatro.  Na noite dedicada a agricultura discutiram sobre as pontes da zona rural. A situação defendia que as pontes estavam sendo feitas. A oposição dizia que só faziam pontes nas estradas que o prefeito tinha propriedades. Por fim, o único debate sem contendas foi àquele dedicado ao desenvolvimento econômico do município. Mesmo assim, ao final da quinta e última noite, logo após Voz de Ouro e Deixa Comigo finalizarem as atividades, aliviados pelo término do Fórum (já não aguentavam segurar os brigões), alguém entendendo ser de ordem metafísica o problema da beligerância jatobense, convidou um padre, um pastor e um babalorixá para exorcizar o evento. O padre jogava água benta, o pastor gritava palavras de ordem contra satanás e o babalorixá soprava pemba para o ar.

No sábado pela manhã Vanderlei Sereno, Paulo Martins e eu nos encontramos no anfiteatro. Ainda achamos preservativos, penas de galinhas e pipocas jogada pelo babalorixá na tentativa de selar a paz com os orixás. Decidimos fazer um balanço de nossa empreitada.

̶  Cheguei à conclusão que o problema não é da classe política – disse Paulo Martins em tom desolador.

̶  Como assim? – falamos em uníssono Vanderlei e eu  ̶   vimos que o problema está na classe política.

̶  Mas é aí que mora o problema – disse Paulo Martins resignado. – Os políticos não brotam em galhos de árvores, não nascem direto da terra. Eles vêm do próprio povo. Quando alcançam um cargo, esquecem suas origens. Tornam-se gincaneiros, pensam que política é lugar de brincar de “nós contra vocês”. São imbuídos de um espirito de disputa, ao invés de enxergarem um espaço de pensamentos, discussões com acordos e até mesmo desacordos, por que não? Mas que seja um discurso republicano, instigado pelo bem da coletividade e não apenas um grupo e seu sagrado ponto de vista. Além do mais, se não alinhados com suas orientações ideológicas, desprezam quem pensa diferente deles. Conseguem falar apenas dentro de suas pequenas bolhas, sem abrir a guarda para serem questionados e terem a oportunidade de crescerem com a discussão.

̶  Não podemos dizer que não tentamos – disse conformado com os resultados caóticos de nosso encontro.

Vanderlei suspirou e ainda lembrou da história da carta de intenções.

̶  O que faremos com a tal Carta de Jatobá? Alguém deu a ideia de enterrá-la no pé do jatobá da praça, simbolicamente como uma semente. O que acham?

Dei de ombros e pensei. Melhor enterrar mesmo. Espero que ninguém a desenterre. Que fique por lá, nas trevas das raízes do Jatobá.

Uma semana depois, no lançamento da Carta de Jatobá, estavam presentes os principais organizadores do Fórum de Desenvolvimento Socioeconômico de Jatobá, a imprensa e alguns curiosos que passeavam pela praça. Houve um único momento de união entre o prefeito Dom Grandito e o opositor Dom Pedrito. Juntos pousaram para a foto. Os dois, ao mesmo tempo, seguravam o cabo de uma pá. Simbolicamente jogavam a última pá de cal que iria sepultar a Carta de Jatobá.

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