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Adamantina
quinta-feira, 18 dezembro, 2025

Entre o provincianismo e o vira-latismo

Confira o conteúdo assinado pelo universitário Vitor Rafael Borges Filgueira

Conversar com pessoas do interior geralmente revela um sentimento recorrente, e foi exatamente essa impressão que tive ao ler o texto de Márcia Molina, “Morar em Adamantina, eis a questão”. Ela descreve como muitos jovens da década de 1970 percebiam a cidade: a ansiedade de “não ver a hora de sair daqui”, acompanhada de críticas como “povo retrógrado, atrasado, provinciano, ignorante e preconceituoso”. O intrigante é que essa percepção não ficou no passado; ela se manteve viva e atravessou gerações.

Provincianismo, afinal, é a estreiteza de espírito que emerge da pouca exposição a práticas culturais e intelectuais. Mas o termo costuma ser usado de forma injusta tanto por quem critica o interior quanto por quem vive nele. Essa visão não surge do acaso: é produto de um habitus cultural fragilizado por falhas históricas nas políticas sociais, culturais e educacionais, em nível municipal e nacional. Não nasce dentro das casas; reproduz-se nas escolas, nas ruas e no imaginário coletivo. Como aponta Tiago Rafael dos Santos Alves:

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“Os estudantes da rede pública carregam, além do caderno e do uniforme, a expectativa silenciosa de que serão a mão de obra que sustenta o cotidiano das pequenas cidades.”

“A região vive um desequilíbrio que poucos gostam de comentar. De um lado, jovens da rede privada que vão embora e dificilmente voltam. De outro, jovens da rede pública que seguram as pontas da economia local e mantêm vivas atividades essenciais.”

A mensagem implícita parece cristalina: o que é bom está fora; o que é nosso é menor. Isso molda identidades, afeta projetos de vida e alimenta um sentimento de insuficiência coletiva.

Esse olhar depreciativo muitas vezes parte dos próprios moradores, que ridicularizam sua cultura e reforçam os preconceitos que dizem combater. Já ouvi comentários como: “Museu? E que história eles têm pra contar? Meia dúzia de velhos com histórias de boteco.” Falas assim diminuem a memória local, enfraquecem o pertencimento e empurram para longe os jovens mais capacitados. São expressões de uma alienação que se aproxima perigosamente do vira-latismo.

Não se trata de culpar indivíduos, mas de compreender que somos reféns de um sistema político que nos restringe. Faltam políticas de manutenção cultural e de desenvolvimento regional que permitam reter talentos e criar oportunidades. Faltou isso às gerações que ficaram e ainda falta hoje. Não existem soluções rápidas; seriam necessários anos de continuidade. Isso, porém, não deveria nos impedir de planejar, cobrar e imaginar um interior que se reconheça como valioso.

E aqui surge outra reflexão necessária: entendemos as necessidades reais de nossas cidades? Em um contexto marcado pela ascensão dos nômades digitais e de novas formas de viver e trabalhar, como pequenas cidades poderiam se adaptar e ampliar sua vida cultural para se tornarem mais atrativas? Para jovens preparados, qualquer lugar pode ser casa, desde que exista algum sentido, algum vínculo, alguma experiência que vá além do “não ter nada pra fazer”.

E esse é o ponto central. Qualquer cidade pode ter sorveterias, lanchonetes, museus e pontos de encontro. O que realmente transforma as relações não é a existência desses espaços, mas a maneira como eles são vividos. É daí que nasce o “enraizamento cultural”: o jovem reconhecendo de onde vem, entendendo e valorizando sua história.

“Por enraizamento cultural, entende-se o processo pelo qual ideias, práticas, memórias e tradições se fixam de forma profunda no cotidiano de uma comunidade, tornando-se parte viva de sua identidade, assim como as raízes de uma planta que se firmam no solo e garantem sua vitalidade. É essa ligação simbólica, afetiva e histórica que sustenta o sentimento de pertencimento.”

E essa reflexão vale ainda mais para os jovens que vêm de famílias simples, afinal, a maioria nas pequenas cidades brasileiras. Falamos muito sobre “reter mão de obra capacitada”, mas mais de dois terços dos municípios são formados por trabalhadores comuns, com salários modestos e oportunidades limitadas. O que pode, então, agradar esse morador e fazê-lo ficar? O que pode criar pertencimento para quem não busca necessariamente universidades de ponta, viagens ou carreiras altamente especializadas, mas apenas uma vida possível, digna e com algum futuro onde nasceu?

Para esses jovens, pertencimento não nasce de grandes estruturas, mas de condições básicas que lhes permitam existir com dignidade: trabalho estável, espaços públicos vivos, transporte acessível, cultura que os reconheça e oportunidades reais, ainda que pequenas, de desenvolver habilidades e construir um caminho próprio. É a cidade oferecer não a promessa de sucesso excepcional, mas a possibilidade concreta de viver bem. Quando isso existe, mesmo o jovem simples passa a enxergar sentido em ficar e, sobretudo, valorizar sua própria terra.

Não se trata de vangloriar o lugar, mas de aprender a gostar dele, compreendendo o que o torna singular. O problema é que, hoje, não podemos afirmar que o que temos seja suficientemente atrativo. Precisamos de mudanças profundas, planejadas e consistentes, para dialogar com essa nova geração e com os novos modos de habitar o mundo.

É nesse cenário que algumas iniciativas locais surgem tentando preencher esse vazio. Há movimentos que buscam fortalecer práticas culturais e recriar vínculos com o território, e é justamente isso que precisamos consolidar: um capital cultural próprio. Isso passa por reconhecer e valorizar nossos patrimônios históricos únicos, nossas vocações econômicas e profissionais, além das manifestações históricas e folclóricas que nos distinguem.

Os municípios promovem feiras culturais, iniciativas comunitárias, a Feira da Mulher e outros eventos que mostram que a cidade tenta, sim, ser atrativa para sua própria gente, e muitas vezes, consegue deixar alguma marca. Mas, apesar de importantes, essas ações ainda não se tornam singulares; poderiam existir em qualquer cidade. Ainda não alcançamos uma tradição própria.

E aí a pergunta retorna: o que realmente nos diferencia? O que pode constituir nosso capital cultural? Não precisamos de algo mirabolante, apenas de algo que seja verdadeiramente nosso. Festas e shows divertem, mas não criam vínculos duradouros nem estruturam pertencimento. Os municípios ainda não atingiram essa cadência cultural; temos alguns eventos dispersos, que acontecem um ano sim e outro não, sem continuidade que permita formar memória ou identidade.

Nesse sentido, o enraizamento cultural não apenas favorece o reconhecimento de si pelo estudante, mas amplia sua capacidade de compreender aspectos históricos e sociais. Sem cultura, um indivíduo torna-se alguém sem referências, não porque precise lembrar “de quem era filho” ou exatamente “de onde veio”, mas porque perde o conjunto de significados que orienta sua leitura de mundo. Possuir um habitus cultural sólido fortalece tanto a formação escolar, ao permitir análises históricas mais maduras, quanto a vivência social. Quando o jovem capacitado se vê inserido e reconhecido dentro de sua própria cidade, passa a enxergar nela não um limite, mas um território possível para construir futuro.

Se aqui não há um capital cultural capaz de enraizar o jovem, por que cidades um pouco maiores conseguem? Presidente Prudente, Araçatuba, Campinas ou São Paulo realmente oferecem mais oportunidades; são centros mais desenvolvidos e capazes de impulsionar a mobilidade social. É evidente que, para mão de obra especializada, o interior perde espaço. O problema, porém, não é a ausência de potencial. Como destaca Tiago:

“Há inteligência, criatividade, cultura e história, mas ninguém constrói futuros onde não enxerga horizontes.”

Enquanto acreditarmos que tudo o que é valioso está fora, reforçamos justamente o provincianismo que criticamos. Não por morarmos no interior, mas por recusarmos enxergar a riqueza que existe nele.

Esse fenômeno não é exclusivo de Adamantina, da Alta Paulista ou do interior paulista; ele é nacional. Criou-se uma hierarquia simbólica que associa grandes centros ao progresso e à cultura, enquanto relega o interior ao atraso. Essa lógica se reafirma quando observamos, como diz Tiago, que “quem pode, vai embora; quem não pode, fica”, aprofundando um desequilíbrio que “a escola, sozinha, não consegue resolver”. Até mesmo os que saem tornam-se, muitas vezes, narrativas heroicas, exceções que confirmam um lugar visto como pequeno demais.

Para quem adota essa visão negativa, nada do interior parece ter valor: nem os cursos, nem a cidade, nem a história. Tudo é visto como uma tentativa fracassada de modernização. Surge então a pergunta incômoda: em que essa postura difere do velho complexo de vira-lata?

E, além disso, o que realmente deve ser considerado ao avaliar uma cidade? Em que momento enaltecemos certos aspectos e apagamos outros? Até que ponto nossas percepções dependem apenas do olhar, ou podemos construir critérios que valorizem a diversidade das experiências locais?

No fim, talvez não faltem ao interior grandes prédios, universidades renomadas ou avenidas iluminadas. Talvez falte, sobretudo, um olhar capaz de perceber que cada cidade carrega mundos inteiros esperando para serem descobertos. O provincianismo real não está no mapa, mas na incapacidade de reconhecer o próprio chão como lugar de criação, memória e futuro.

Como sintetiza Tiago Rafael:

“Se quisermos que os jovens fiquem por vontade e não por falta de opção, precisamos de governantes que deixem de tratar a região como apêndice administrativo ou apenas como território eleitoral. É necessário planejamento, investimento, diálogo com as universidades e comunidades escolares, incentivo real à formação técnica (ou superior) conectada ao território e políticas que tornem possível um futuro aqui, e não apenas nos grandes centros.”

Se quisermos reverter esse ciclo, precisamos mais do que discursos: precisamos de políticas culturais consistentes, espaços públicos vivos, projetos que conectem jovens à história local e oportunidades que façam sentido para a geração que chega. O interior não precisa competir com metrópoles; não precisamos crescer, precisamos nos desenvolver, encontrar nossa vocação e fortalecê-la. Quando uma cidade aprende a valorizar o que tem e a cultivar o que pode ser, ela deixa de perder seus jovens e começa, enfim, a inspirá-los a ficar.

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