“O tempo engole e o fogo consome; aquilo que tinha vida hoje não tem mais nome.”

O que é patrimônio histórico?
Provavelmente você já tenha uma ideia do que seja patrimônio histórico e, em parte, ela deve estar correta, embora incompleta. De acordo com o Dicionário Aurélio, patrimônio histórico é “o conjunto de bens materiais ou imateriais que possuem valor histórico, artístico, cultural ou científico para uma sociedade”.
Quando ouvimos essa definição, é comum pensarmos apenas em elementos grandiosos: museus imponentes, casarões de barões do café ou centros históricos dos séculos XVIII e XIX. Mas, quando trazemos essa reflexão para o interior, surge a pergunta: o que, afinal, se torna patrimônio aqui?
Assim como nas grandes cidades, o patrimônio histórico não se limita ao que impressiona pela escala ou arquitetura. Ele abrange tudo aquilo que guarda memória, expressa identidades e revela nosso passado, por mais simples que possa parecer. Uma placa de rua, uma tampa de bueiro, um poste, uma casa comum, tudo pode ser patrimônio, dependendo da história e do sentimento que carrega.
A ANTIGA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE ADAMANTINA
Entre os patrimônios mais emblemáticos de Adamantina-SP, está a estação ferroviária, que foi destruída pelas chamas.
Integrante do ramal da antiga Companhia Paulista de Estradas de Ferro, ela conectava Adamantina e toda a Nova Alta Paulista à capital paulista, tendo como referência final a histórica Estação da Luz, principal centro de articulação ferroviária do estado. Essa ligação possibilitou o fluxo constante de pessoas, mercadorias e informações entre o interior em desenvolvimento e São Paulo.
Aqui vale uma observação importante: ao longo deste texto, utilizo ocasionalmente o termo “região” para me referir à Nova Alta Paulista. Tecnicamente, contudo, o termo “região”, do latim regiones, refere-se a demarcações administrativas e, oficialmente, a Nova Alta Paulista não é uma região administrativa. Ela faz parte da Alta Paulista e funciona, no máximo, como uma micro-região funcional. Ainda assim, por sua relevância histórica, cultural e identitária, adoto aqui o termo “Nova Alta Paulista”.
A ferrovia funcionou como elemento estruturador da vida cotidiana. Por seus trilhos circulavam agricultores, comerciantes, imigrantes e trabalhadores; também por ali passavam os produtos agrícolas que impulsionaram a economia regional. Ao redor da estação consolidou-se um núcleo dinâmico de serviços, comércio e sociabilidade, uma movimentação urbana típica das cidades formadas “ao longo dos trilhos” no oeste paulista.
Mesmo fechada com o declínio das ferrovias no final do século XX, a estação permaneceu como símbolo da memória adamantinense. Seus elementos arquitetônicos e o pátio ferroviário remanescente preservam testemunhos de um período em que o trem representava progresso, comunicação e integração regional.
IMPORTÂNCIA DA PRESERVAÇÃO PARA A COMUNIDADE
Meu primeiro texto publicado aqui foi “Sobre os Trilhos”, e possivelmente os próximos também terão relação com o tema. Meu objetivo é ampliar o conhecimento, divulgar e fortalecer o entendimento sobre aquilo que é nosso: o patrimônio histórico. A ferrovia é um marco de gravidade na formação de nossas cidades; é daí que nasce a ideia e a necessidade de restaurarmos a estação ferroviária de Adamantina.
Como muitos sabem, a estação ferroviária de Adamantina não apenas pegou fogo: ela foi destruída em 1 de maio de 2000, em um incêndio que mobilizou bombeiros, caminhões-pipa e até soldados do Tiro de Guerra. O prédio, já deteriorado e parcialmente ocupado por moradores, ardeu rapidamente, e pouco sobrou daquela estrutura que, por décadas, havia sido o marco inicial da formação da cidade. Desde então, o local permanece abandonado, uma cicatriz aberta na memória urbana.
Situações semelhantes ocorreram em cidades vizinhas, onde antigas estações, armazéns e pátios ferroviários desapareceram sem que a comunidade percebesse, no momento, o tamanho da perda. Parece simples, mas muitas cidades nasceram justamente ao redor dessas construções, que eram centros de circulação, trabalho, cultura e convivência social.
Valorizar iniciativas voltadas à proteção do patrimônio histórico é fundamental para qualquer cidade que respeita sua própria identidade. Esse compromisso tem sido mantido, sobretudo, pelo trabalho das entidades Associação de Preservação da Memória Ferroviária e Associação de Preservação das Tradições Ferroviárias, que atuam de forma contínua em defesa da memória ferroviária paulista e brasileira.
POR QUE A ESTAÇÃO?
Restaurar a estação não é apenas recuperar um prédio nem um capricho pessoal, mas sim um esforço coletivo em prol daquilo que deu origem e vida ao município.
É restituir um ponto de origem, um elo que explica por que Adamantina, e tantas outras cidades, se organizaram, por que cresceram, onde cresceram e por que sua identidade carrega marcas tão fortes da ferrovia.
Também é fundamental esclarecer que a restauração de patrimônio não compete com saúde ou educação. Cada secretaria possui orçamento próprio: saúde investe em saúde; educação investe em educação; e cultura deve investir em cultura. Proteger o patrimônio histórico é uma responsabilidade legítima, prevista em lei e estruturada no orçamento público. Não se trata de “tirar recursos” de áreas essenciais, mas de garantir que a história que nos formou não desapareça.
COMENTÁRIO DE SÉRGIO FEIJÃO FILHO
(Reproduzido aqui como fala dele, não do autor)
“Mesmo porque, segundo a proposta das Associações, a reconstrução da Estação se fará com verbas oriundas da iniciativa privada, cabendo à Municipalidade a parceria institucional, visto que o Executivo detém o direito de uso da área cedida há anos, e qualquer interferência no espaço deve contar com a parceria da Cidade.
Outrossim, Adamantina sempre teve protagonismo na Alta Paulista, e agora que a concessionária Rumo Malha Paulista S.A. avança na reconstrução da linha entre Bauru e Panorama, é muito adequado que a Cidade de Adamantina se preocupe com a questão da Estação que, em outros tempos, foi o centro de gravidade da sociedade local.
A reconstrução do modesto, mas icônico prédio de madeira da Estação deverá abrigar um centro dedicado à memória da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, bem como de suas não menos importantes subsidiárias que deram vida à Cidade: o CAIC e a Companhia Paulista de Transportes, com seus caminhões que interligaram a ferrovia aos mais remotos pontos não atendidos pelo trem.”
MEMÓRIA, IDENTIDADE E FUTURO
Preservar bens históricos fortalece a consciência da comunidade sobre suas raízes. Fotografias, documentos e registros da estação, inclusive as imagens do incêndio de 2000, cumprem hoje um papel essencial ao mostrar o que já tivemos, o que perdemos e o que ainda podemos recuperar. São materiais que não apenas documentam o passado, mas ajudam a compreender processos de desenvolvimento, transformações urbanas e decisões políticas que moldaram a cidade.
Ao proteger nosso patrimônio, reafirmamos o compromisso com a memória coletiva e garantimos que elementos marcantes da cultura, da identidade e do desenvolvimento local permaneçam vivos para as próximas gerações. Uma cidade que deixa sua memória desaparecer abre mão de parte de si mesma.
Sim, entendemos as demandas urgentes de um município e os desafios envolvidos em um projeto de restauração; mas não podemos permitir que essa parte da identidade adamantinense continue abandonada, há quase 26 anos esquecida.
Diversas cidades brasileiras transformaram suas antigas estações em centros culturais, museus ferroviários, espaços educativos, pontos de encontro e convivência. Adamantina pode fazer o mesmo.
A estação ferroviária já foi símbolo de chegada, movimento e esperança. Recuperá-la significa permitir que volte a cumprir esse papel, agora como patrimônio vivo, capaz de fortalecer a história, a cultura e a autoestima da cidade.
Por fim, vale lembrar a máxima: quem ignora o passado está condenado a repeti-lo.
Fonte: Jornal Diário do Oeste | 17/05/2000






