(Muda-se o nome das cidades e das pessoas, mas o resto é “quase” tudo igual)
As frases em itálico ao longo deste texto foram extraídas do livro O Parque dos Lobos, de Henrique Prata. Elas revelam, entre outras coisas, como maus políticos e grupos corporativistas interferem na medicina pública. Como situações semelhantes às retratadas na obra se repetem em todo o país, acredito que essa reflexão possa nos ajudar a compreender melhor por que a saúde pública brasileira enfrenta tantos entraves.
“Comecei a perceber, de forma clara, a existência de um bando de lobos vestidos de cordeiro, que se fazem de defensores da medicina pública quando, na verdade, a intenção sempre foi defender a medicina privada. Geralmente, na medicina do dinheiro, há médicos bem-sucedidos que se envolvem com prefeitos, e eles se tornam secretários de saúde para evitar a concorrência do serviço público de qualidade. Tais gestores, porém, não enxergam o paciente em si, com sua carga de sofrimento e vulnerabilidade. Esquecem que, além da qualidade técnica, é necessária uma dose enorme de empatia.
Muitos talvez não quisessem se olhar no espelho e descobrir que a ambição e o afã de preservar conquistas o levaram a pensar apenas em si e a vender dificuldades para conseguir facilidades, prejudicando os mais fracos. Diante das dificuldades, os pobres são os que dispõem do que têm, como bicicleta, carro e casa, por exemplo, para sanar questões de saúde. Então, é muito triste. Eles não têm orientação de advogados nem de ninguém, sendo os mais prejudicados.
Na crise da pandemia (COVID-19), o prefeito de Bebedouro, procurou-me querendo concluir um hospital que estava 60% construído. Barretos já estava com a capacidade esgotada, então entramos nesse hospital de Bebedouro. Compramos uma fábrica de oxigênio, fizemos uma série de instalações, foram gastos uns três milhões de reais, mas criamos quarenta leitos, vinte de UTI e vinte de clínica, e fizemos o hospital funcionar.
Qual não foi a minha surpresa, porém, quando no começo de 2022, o governo de São Paulo fez uma licitação para completar a obra, quando nós estávamos lá há dois anos, sem contrato, tocando até a UTI. E quem, surpreendentemente, entra na concorrência, querendo pegar o serviço, na minha vizinhança, não importando com quem já estava fazendo o trabalho? O hospital Sírio Libanês, rico, milionário e que ainda usufrui das benesses de subsídios financeiros como o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS).
Uma das maiores denúncias que fiz na revista Veja foi sobre os hospitais que atendem 100% em regime particular e compram equipamentos com subsídios por serem “filantrópicos”. Além do Sírio, também há o Albert Einstein, o Oswaldo Cruz, a Beneficência Portuguesa, o Moinhos de Vento, os mais ricos e beneficiados. Usam o próprio imposto de renda em seu benefício, ainda com a facilidade de pegar dinheiro dos impostos de terceiros, concorrendo conosco, que somos 100% públicos. E nós, os públicos, precisamos concorrer com eles, que têm incomparavelmente mais força e mais recursos. Essa história me deixou extremamente revoltado.
O poder que a medicina privada tem é algo que ninguém imagina, e pelo que me lembro, insisto, só com um único homem, o ministro José Serra, ela não deu as cartas. Portanto, as coisas poderiam ser bem melhores. Bastaria vontade política e o homem certo no lugar certo, mas estou há trinta e três anos nesse segmento e só vi despreparo ou má-fé. E agora, com tanto tempo de luta, sinto-me no direito de me abrir contando tudo isso.
Como sistema público de saúde, não me refiro a governos municipais, estaduais ou federais. Estou falando de 80% da população que depende desse serviço e que sofrem e são humilhados, quando uma gestão honesta poderia solucionar de forma relativamente fácil toda a situação. Eu não conheço a dimensão da fome neste país chamado Brasil, mas sei a dimensão das pessoas que morrem nas filas, dependentes da saúde pública. E posso afirmar que é muita gente. ”
Aqui, retomo a palavra. Espero que as informações acima alcancem o maior número de pessoas possível. Elas mostram como a ‘medicina do dinheiro’ e políticos sem escrúpulos prejudicam a medicina pública no Brasil. Também expõem a voracidade dos lobos vestidos de cordeiro que costumam transformar hospitais filantrópicos em extensões de seus próprios negócios, sacrificando justamente quem mais precisa do serviço dessas instituições. Detalhe. O autor do livro O Parque dos Lobos, Henrique Prata, é presidente do Hospital do Amor, em Barretos-SP. Carpe diem, caro leitor!








