Pauliceia, a pequena ribeirinha, ganha destaque no mapa da sustentabilidade ao sediar o primeiro santuário das sementes crioulas do oeste paulista. Em celebração ecumênica compartilhada por cerca de uma centena de pessoas vindas de dezessete municípios, na segunda-feira, 19 de agosto, dois padres, um pastor e um diácono abençoaram um paiol construído pela metodologia da bioconstrução, onde, há meio século, se guardam sementes que alimentam as famílias produtoras e também muitos consumidores das feiras livres de Pauliceia, Panorama e Tupi Paulista.
Do latin sanctuarium ou sancitus, santuário é um local sagrado para onde acorrem peregrinos. Para algumas correntes ambientalistas, são reservas verdes que servem de proteção a vidas livres ou refúgio para espécies ameaçadas. Os santuários são sempre locais de encontro e de memória e ali convergem as várias dimensões do tempo.
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Um santuário é visitado por muitas pessoas que partilham ideais semelhantes, demonstrando que a cultura de um povo é fruto de processos históricos, resultando na construção da sua identidade. A peregrinação, portanto, indica a continuidade de valores e crenças que adentrarão, ao menos, o futuro próximo. Passado, presente e futuro tornam-se unidade a partir da memória de quem acredita na simbologia ali representada.
No campo da ecologia, os santuários são repositórios da vida porque, propositalmente, guardam as suas sementes, formando os chamados bancos de germoplasma. Por instinto de sobrevivência e por hábito, nossos antepassados dividiam as suas colheitas em três partes: uma para consumo, uma para o próximo plantio e uma para as trocas com outros agricultores. Nesse gesto simples os agricultores mantinham a autonomia alimentar e preservavam a diversidade ambiental.
Essas sementes livres de manipulação genética são conhecidas como sementes crioulas e quem as cultiva e as guarda é chamado de guardião. Após a industrialização da agricultura, em meados do século XX, elas tornaram-se símbolo da resistência contra a produção em série e a esterilização das sementes feitas em laboratórios. São cultivadas especialmente por pequenos agricultores, que, assim, subvertem uma ordem econômica hegemônica e mantém a sua autonomia como produtores dos seus próprios alimentos. Mais que celeiros, elas constituem um estilo de vida, pois cultuam a ancestralidade humana e proporcionam mais equilíbrio à relação sociedade natureza.
Em Pauliceia, no assentamento Regência, José Luiz das Chagas cultua essas sementes há cerca de cinquenta anos, tornando-se, portanto, um de seus guardiões. Cultivando e realizando trocas ele coleciona quase uma centena de variedades de hortaliças, legumes, frutíferas, tubérculos, cereais, oleaginosas e outras. Seu trabalho inspirou o grupo Mulheres que Lutam, que produzem cestas agroecológicas sob orientação técnica de agrônomos do Rancho Y-Iara, em trabalho decorrente do Projeto Sementes Crioulas, formado com apoio da Agência Inova Paula Souza. Conta com o apoio da Prefeitura Municipal de Pauliceia, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), do Fundo Diocesano de Solidariedade (FDS), da Cáritas Diocesana de Marília, e de um grande número de apoiadores.
Relativamente comum no semiário nordestino, norte de Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, em São Paulo, onde predominam as monoculturas da cana de açúcar, da laranja e das pastagens, a constituição de um santuário de sementes crioulas não é algo comum. Localizado em meio a um imenso canavial, o santuário é um ponto de inflexão e nos instiga acerca do nosso futuro comum: como produzir alimentos saudáveis e como garantir soberania alimentar frente aos desafios contemporâneos?
Prof.ª Izabel Castanha Gil
Agente de Inovação pela Agência Inova Paula Souza
Professora da ETEC Prof. Eudécio L. Vicente e da UniFAI
Adamantina/SP