Dos engenhos de açúcar, no século XVII, o padre Antonio Vieira escreveu: “Quem via na escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes (…) o ruído das rodas, da gente toda de cor da mesma noite, e gemendo, tudo sem trégua e descanso (…) toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Étnas e Vesúvios, que é uma semelhança do inferno”.
Nesse relato, o religioso denunciava um reinado que teve inicio em 1532 e que ainda hoje, graças à hipocrisia da sociedade brasileira, continua sem data para acabar.
Quase nada mudou. A começar pela mão de obra, uma vez que a gente de cor da noite ainda é maioria nos canaviais. E os poucos brancos que lá trabalham, por um capricho do destino, no final do dia, também ficam negros com a fuligem e o carvão da cana queimada, que grudam nos seus corpos suados.
Infelizmente as semelhanças não terminam aí. Se a jornada dos escravos da cana-de-açúcar era a da natureza, de sol a sol, hoje, os cortadores de cana acordam às quatro horas, preparam sua marmita, e, no máximo, as cinco já estão no ponto do ônibus que os leva até à lavoura, muitas vezes, a mais de 100 quilômetros de casa.
Eles voltam extenuados, moídos como a cana que sai da destilaria, jogando a água que sobrou das moringas. Isso porque, mesmo sob um sol escaldante, se quiserem acrescentar alguns centavos ao pouco que levam para casa, nem têm tempo de saciar a sede.
Sorte pior é a dos trabalhadores vindos de outros estados, conhecidos como “Andorinhas”, que não são nem de lá nem de cá e que vivem num extremo que, às vezes, os leva às raias da loucura. Muitos mal conseguem pagar as despesas contraídas nos alojamentos (senzalas?). Esse é o cotidiano do cortador de cana em muitas destilarias do Oeste e do Noroeste do Estado.
Ironicamente, mesmo reeditando o doloroso passado no trato com seus principais colaboradores, as destilarias vivem seus melhores momentos. Elas conseguiram aumentar a área de cultivo, renovar o parque industrial e as frotas, bem como ampliar a produção. Tudo, graças aos trabalhadores, que tiveram um importante papel na queda de braço do setor com o governo federal na crise do final dos anos 1990, quando elas vendiam o álcool a 15 centavos, um preço bem diferente dos 90 centavos que hoje recebem.
Quem não se lembra dos cortadores de cana fechando rodovias e fazendo passeatas em Brasília? No entanto, se o preço do álcool aumentou seis vezes, o salário dos cortadores quase nada mudou.
Na época, os usineiros utilizaram o pretexto do desemprego para usar o trabalhador em favor de seus interesses, agora usam as máquinas de cortar cana, que fazem o serviço de 80 homens, para desestimular reclamações.
É exatamente isso: essas predadoras de mão de obra, por “coincidência”, compradas com o lucro da venda do álcool a um preço seis vezes maior que o da época das passeatas dos cortadores de cana, ficam expostas no pátio das destilarias, bem à frente dos olhos dos trabalhadores, como uma ameaça permanente, a lhes calar a voz.
Essa é a parte amarga da cana-de-açúcar que a sociedade prefere não enxergar.
Nota:
Este artigo, que publiquei em 2003, foi reproduzido pela Revista Espaço Acadêmico, da Universidade Estadual de Maringá, em 2005, e pelo Projeto Vidas Paralelas da UnB e dos Ministérios da Cultura e da Saúde em 2009.
Apesar da repercussão que o texto teve, como nenhuma autoridade se preocupou com o assunto, em 2014 a queima da cana chegou ao fim e milhares de trabalhadores foram substituídos pelas maquinas.