Tarde de 4 dezembro de 2020. Mais um dia de pandemia de covid-19, com restrições e cuidados visando a preservação da saúde da comunidade. Após um ano de incertezas, se deparar com a história de Alceu Maluf faz repensar os propósitos da vida. O jurista, um dos mais renomados da Alta Paulista, abre o coração em uma entrevista à VOX marcada por recordações simples, mas, profundas. Lembranças que dão um novo sentido ao momento que o mundo atravessa, enfatizando a necessidade da prática das três virtudes teologais: fé, esperança e amor.
Em 1956, depois de passar cinco anos estudando em São Paulo, o recém-formado em Direito Alceu Maluf decidiu que era necessário mudar de ares. Deixou a Capital paulista, já com seus movimentos frenéticos, em busca de oportunidades profissionais na então maior comarca do estado de São Paulo – em território. Com gosto pelo “mato”, remetendo as origens, ele escolheu a pacata Pacaembu para iniciar uma nova história. Trajetória que ressalta a essência do jurista, de sorriso largo, desejos simples, mas refinados, e, principalmente, com forte apego familiar.
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Vivendo um novo momento, como todo o mundo, com as restrições impostas pela pandemia de covid-19, recordar os 92 anos de vida traz um novo sentido, expressado em cada lágrima durante entrevista à VOX. Com esperança que tudo passará, o advogado aposentado relembra o amor pela família e a fé que o guiou durante toda a carreira profissional. Virtudes repassadas para filhos, netos, bisnetos e todos aqueles com momentos compartilhados.
AS ORIGENS
Nascido em 1928, em Presidente Bernardes, o quinto filho de oito do casal Gabriel e Guilhermina Carlos Maluf dedicou a vida ao trabalho e relações familiares. As origens libanesa por parte de pai e italiana, pela mãe, ressaltam suas características pessoais.
Com cinco anos de vida, a família se mudou para Piracicaba. Já na adolescência, nova mudança, desta vez Alceu foi morar em Presidente Prudente para ajudar um primo que tinha uma concessionária de veículos. Meses depois, ainda em 1946, ele foi auxiliar o pai em uma máquina de arroz e café em Promissão, marcando um novo momento em sua vida.
Neste período, Alceu conheceu Ignez Oliveira Maluf, uma jovem de Birigui que estudava em um colégio interno de Cafelândia, cidade vizinha de Promissão. A relação, iniciada ainda quando jovens, se mantém até hoje alicerçada na confiança e no companheirismo, essências perceptíveis em cada cuidado na sessão de fotos para esta reportagem. Eles se casaram em 1957.
Retornando para Piracicaba, ele se dedicou aos estudos para ingressar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, vinculada à USP (Universidade de São Paulo) – considerada até hoje a melhor instituição do país.
No primeiro ano do curso superior, Alceu já procurou um trabalho, proatividade que sempre buscou em todas as fases da vida.
Fez teste para atuar na primeira agência do Banco de Minas Gerais em São Paulo, onde trabalhou durante quatro anos de faculdade. No último ano, se dedicou mais aos estudos e na assistência jurídica para população de baixa renda.
“Cresci dentro do banco, passei em diversos setores. Fizeram proposta para continuar no banco, mas havia decidido que dedicaria apenas aos estudos”, recorda. “Fizeram a proposta de criar o Departamento Jurídico dentro do banco, mas, respondi: de jeito nenhum, eu vou para o mato. E vim embora”.
Em março de 1956, Alceu colou grau.
UMA VIDA AO DIREITO
“Sejamos simples e puros para com o Direito como o amor tem sua fonte no coração dos homens”. A frase, de Gofredo da Silva Teles, que foi um dos maiores juristas brasileiros e professor de Alceu durante a faculdade, resume a dedicação dele com a profissão. Aliás, a sua base educacional contou com nomes renomados no país, como Miguel Reale, inclusive o ex-ministro de Justiça, Márcio Thomaz Bastos, foi quem assinou a sua carteira profissional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de número 9.048 – demonstrando o pioneirismo na advocacia brasileira.
Toda a bagagem adquirida durante o curso superior foi transformada em dedicação a profissão. Ainda em 1956, logo após a formatura, Alceu decidiu se aventurar no extremo interior paulista. “Dedo de Deus na vida da gente”, ressume.
Na época, Pacaembu era a maior comarca em território do estado de São Paulo, o que vislumbrava grandes oportunidades profissionais. Chegando lá, encontrou uma pequena cidade ainda no início, buscando seu desenvolvimento.
“Não havia sala para alugar, recebia o pessoal em um quarto de hotel. Eu sentava em uma cama, e o cliente na outra. A mesinha do quarto ficava no meio, com a máquina de escrever portátil”, conta.
A simplicidade do início está representada no escritório de Alceu. Fotos da faculdade, dos pais e da formatura recordam sua trajetória de vida. O crucifixo mostra a sua característica cristã. E, a primeira máquina de escrever, até hoje relembra a origem de todo o sucesso profissional.
Ao mesmo tempo que observava o progresso chegar em Pacaembu, desde o primeiro médico até a linha do trem, Alceu expandia sua atuação, abrindo um escritório de advocacia em Junqueirópolis. “Fui o primeiro advogado da cidade”.
Em 1969, surgiu a oportunidade de nova mudança em sua vida. Um advogado de Adamantina, que havia passado em concurso para Promotor de Justiça, convida Alceu para assumir o escritório de advocacia, marcando o início da relação com a cidade que vive até hoje. “Leão Vidal Sion cedeu os clientes por questão de confiança”.
Durante três meses, a rotina era dividida entre Pacaembu e o novo local de trabalho, sendo optado pela mudança em definitivo para aproveitar mais os momentos em família, que sempre valorizou.
Na época, Adamantina contava com seis advogados, uma parceria profissional que define como “leal”. “A palavra era naturalmente cumprida”, afirma. Também, comum naquele momento, Alceu era nomeado constantemente pela Justiça como promotor ad hoc e até juiz substituto, quando necessário.
No mesmo ano que se mudou para Adamantina, Alceu prestou um concurso para Procurador do Estado. “Recordo que logo depois da prova fui almoçar com meu irmão, e todos estavam no restaurante assistindo o homem chegar a lua”.
Tempo depois, já sem esperança, foi chamado para assumir o cargo em 1974, na regional de Presidente Prudente, mas com forte atuação de Osvaldo Cruz até a “barranca do rio”, conforme colocação popular.
A partir daí, a dedicação profissional de Alceu se estendeu para todos os municípios da região. Mas, o carinho por Adamantina nunca foi deixado de lado, também havendo contribuição importante para o desenvolvimento do Direito na cidade.
Ao lado de Oldemar Humberto Marconi, Alceu fundou a 59ª subseção da OAB, sendo vice-presidente nos anos de 1977 e 78 e, presidente, na segunda gestão. Ele exerceu a função de Procurador do Estado até 1996, quando se aposentou.
DEDICAÇÃO A FAMÍLIA, E AO PRÓXIMO
Na entrevista à VOX, Alceu contou com a companhia do filho José Luiz, o Cuca, e do neto Thiago – os dois seguem caminho na advocacia. Três gerações reunidas para relembrar a origem da família, encontro comum para os Maluf.
Até hoje com forte ligação, eles sempre estão juntos – na medida do possível devido a pandemia – para compartilhar momentos. “Sou muito família, me sinto bem com os membros de minha família. E eles correspondem a mim, sempre querem se reunir”.
Além de Cuca (Advogado), o mais novo de cinco irmãos, o casal Alceu e Ignez tem os filhos Silvia Patrícia (Dentista), Maria Ignez (Dentista), Silvio César (Procurador de Justiça) e Alceu Junior (Zootecnista e bacharel em Direito). As noras e genro são: Renata (Professora), Heloisa (Dentista) e Virgílio (Dentista). Os netos são Marcela (Dentista), Lucas (Publicitário), Lívia (Dentista), Rodrigo (Economista), Guilherme (Estudante de Engenharia), Fernando (Estudante de Medicina), Rafael (Estudante de Engenharia), Thiago (Advogado), Alceu Neto (Estudante de Medicina), José Eduardo (Estudante de Direito) e Marina (Ensino Médio). E, os bisnetos: Rafaela, Fernanda, Isabela e Cecília. “Os momentos mais felizes vivi em casa, com a minha família”, enfatiza o patriarca dos Maluf.
E toda essa dedicação extrapola as quatro paredes de sua casa, chegando ao próximo. Desde a época que morava em Pacaembu, Alceu sempre teve forte ligação com a comunidade, contribuindo de diversas formas para construção de uma sociedade melhor. Lá, ele foi um dos fundadores do Lar dos Velhos e da Santa Casa, por exemplos.
Já em Adamantina, mesmo com os compromissos profissionais, Alceu não deixou de dar sua parcela de contribuição, participando desde a vida social da cidade, como presidentes dos clubes de lazer, até na questão religiosa, sendo um membro ativo da igreja católica.
“Pessoalmente, familiar e profissionalmente, sou um homem realizado. Nunca tive crises na vida, nem de dinheiro, nem de amizade… sempre fui muito feliz a vida inteira. Muitos amigos, sempre me dei bem com todos. E, agora, pandemia, temos que enfrentá-la”, disse.
GOSTOS PESSOAIS
Hoje, Alceu passa o dia em casa, principalmente nos jardins, local que gosta de admirar. E, a leitura, continua fazendo parte da rotina, hábito criado ainda jovem.
O advogado aposentado também tem uma paixão pela música clássica e a poesia. Inclusive, durante a entrevista declamou um verso de um profundo poema de Júlio Salusse, os Cisnes: “Um dia um cisne morrerá, por certo: / Quando chegar esse momento incerto,/ No lago, onde talvez a água se tisne, / Que o cisne vivo, cheio de saudade, / Nunca mais cante, nem sozinho nade, / Nem nade nunca ao lado de outro cisne!”, conta, em meio as lágrimas. “É muito lindo”, completa.
Este poema é um dos que Alceu declamava durante um programa de rádio, na época que morava em Piracicaba. Escondido do pai, toda a noite participava do ‘Tangos e Poesias’ com o heterônimo de Câmara Leal – denominação escolhida sem nenhum motivo.
Porém, conforme o filho Cuca recorda, o nome consta no livro do professor, filósofo e escritor Gabriel Chalita. Em ‘Memórias de um homem bom’, o autor procura recontar através da voz de seu pai a história de sua família.
“Como consta no livro, quando os libaneses chegaram ao Brasil, vinham sem registros, sem documento de alfandega, de visto, e existia um advogado no Rio de Janeiro que gratuitamente regularizava a situação dos imigrantes. E o advogado chamava Câmara Leal, me chamou muito atenção essa coincidência”, disse Cuca, todo orgulhoso da trajetória do pai. “Temos um nome a zelar, e não digo pelo sobrenome, mas pela lealdade moral que ele tem com as pessoas. E, como filhos e netos, passamos a preservar a sua história. Meu pai é um homem bom”.